Ouço muito falar de revolta e vejo muitos comportamentos de autopiedade, por parte de alguns dos meus colegas de cancro e também de familiares e amigos chegados.... frases como "Não é justo...", "Porquê a mim?", "Eu não merecia isto...", "Sinto-me revoltado...", etc... palavras e ideias que entendo...na perfeição... felizmente que nunca cheguei a passar por esta fase, talvez porque por via de outros problemas anteriores tenha conseguido ultrapassar essa coisa da autopiedade.
Tudo isto são várias faces do mesmo problema que se chama autopiedade, esta autopiedade que nos leva a ter pena de nós próprios e nos prende e aniquila como uma teia onde a aranha apanha a presa... ficar preso nas teias da autopiedade é das piores coisas que nos pode acontecer na vida, no caso do cancro é a mais negra das situações, pois a autopiedade faz-nos escavar cada vez mais fundo num ciclo vicioso sem fim.... Quanto mais pena temos de nós próprios mais pena nos dá a nossa imagem numa espiral negativa que aniquila e asfixia paradoxalmente, cega-nos, leva-nos ao ressentimento, ou seja, à revolta... e a muitos outros os sentimentos negativos que nos poluem a alma...
Tudo isto começa porque todos ou quase todos pensamos que somos pessoas boas, honestas, com bons sentimentos, etc.., pensamos que salvo raras e irrelevantes exceções temos um bom curriculum de várias boas ações... temos tendência a identificar pessoas que têm comportamentos muito piores do que os nossos, esses sim, esses merecem... nós não... todos temos uma lista interminável de pessoas que mereciam ser castigadas pelas mais variadas causas...
Pois eu penso que a autopiedade é o sentimento mais egoísta que existe... ora vejamos.... quando ouvimos dizer "Não é justo..." isso quer dizer que todas as outras pessoas que têm cancro é justo? só nós é que não? ou então "Porquê a mim".... transformemos isto em "Porque não a mim?...." o que tenho eu de especial que os outros doentes oncológicos não têm? isto não é egoísmo? ou "Eu não merecia isto...." e os outros merecem?... "Sinto-me revoltado..." porquê? o que tenho eu de tão melhor pessoa do que os outros que me sinta revoltado por ter o mesmo que eles?... pois é meus amigos a lista de situações é mais ou menos interminável....
Somos pessoas humanas comuns... não somos melhores nem piores... somos diferentes... cada individuo tem a sua idiosincrassia pessoal, mas no geral somos bastante heterogéneos com os demais.... não é assim tão difícil aceitar que a sorte que calhou aos outros quando o cancro lhes foi diagnosticado foi a mesma que nos calhou a nós... o problema é que o nosso egoísmo cega-nos e não nos deixa ver a realidade tal como ela é.... estamos tão focados nas nossas desgraças que nem conseguimos ver as dos outros... essa é a questão principal... muitas vezes basta-nos olhar para o lado e sempre existem casos piores que o nosso... sempre... basta procurar...
Há uns tempos estava no hospital Amadora-Sintra e ao meu lado estava uma senhora que aparentava ter a idade da minha mãe, no incio da quimioterapia e por causa dos efeitos secundários que tinha nos dedos acabamos por conversar sobre isso... a dada altura ela diz bem alto: Estou tão revoltada!!! repetia .. e repetia... e eu já começava a sentir-me impaciente e perguntei-lhe: então e sente-se revoltada porquê? ela prontamente: Pelo cancro, eu não merecia....!!!! e eu respondi-lhe: Então se a senhora não merecia... acha que as outras pessoas que estão aqui merecem? só a senhora é não merecia? Ela ficou atrapalhada, calou-se e não falou mais e eu pensei... pronto, por causa deste meu mau feitio, acabei de arranjar mais uma "amiga" e vi que ela tinha ficado incomodada... No mês seguinte fui novamente tirar análises como faço quase todos os meses... e quando entrei na sala vi a mesma senhora ao fundo mas não me dirigi a ela e fui até ao guiché tratar da minha consulta e qual não é o meu espanto, quando sinto alguem a tocar-me no ombro e dou de caras com a mesma senhora a perguntar-me como é que eu estava e com uma cara que irradiava simpatia... não sei se foi mesmo da conversa anterior mas o facto é que a senhora estava com outro ar... será que a minha resposta a ajudou? não sei...
A autopiedade limita-nos o campo de visão, impede-nos de sentir gratidão, leva-nos à autoderrota, ao sentimento de infelicidade, e não nos deixa andar para a frente, levantar cabeça e continuar... este sentimento num doente oncológico ou mesmo numa familiar é altamente destrutivo e impede a pessoa de iniciar o caminho mais correto e assertivo da aceitação....
Libertarmo-nos da autopiedade é o primeiro passo para acordar para a nova realidade que temos e seguir o nosso caminho, procurar a felicidade nos dias que nos restam... aceitar a nossa condição sem dramas e viver, viver o que nos resta com paixão e qualidade!
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