quarta-feira, 25 de abril de 2018

A classe médica e o cancro

A vida de um doente oncológico alem de ser uma montanha russa de emoções é também uma verdadeira diversão no que respeita à classe médica.
Hoje vou contar dois episódios em parte antagónicos que demonstram bem a diferença de opiniões e de atitudes da classe médica perante esta doença, ou talvez isto traduza também a própria evolução profissional dos profissionais.

Quando ainda estava na CUF a tomar o sunitinib, um dia a tensão arterial subiu a 11/18, efeito secundário do medicamento, e eu dirigi-me ao hospital de dia pois era as instruções que tinha, cheguei e um médico já com muitos anos de profissão, mandou dar-me uma medicação qualquer e a tensão começou a descer... Ao fim de um tempo, pelas 16 horas com a tensão já com níveis aceitáveis perguntei se me podia ir embora... o médico olhou para mim espantado e perguntou? 
- onde é que você quer ir? 
- doutor quero ir trabalhar, ainda é cedo e e eu tenho muito que fazer.... 
ele ficou irado e perguntou rispidamente:
- a sua mulher está aí? 
- sim, está na sala de espera.
 Mandou a enfermeira chamá-la e disse-lhe:
- Dê um sedativo a este homem para ele perder a vontade de ir trabalhar, só sai daqui para casa e para a cama...
Eu fiquei a morrer de raiva... acho que me deve ter subido logo a tensão (risos) mas não tive outra hipótese senão aceitar a injeção com o sedativo, aliás não havia alternativa, era um ordem do médico.... e assim me tiraram a vontade de ir trabalhar, lembro-me de ir bem triste para casa, a sentir-me doente e impotente em condições nada agradáveis... 

Em outra ocasião, estava em casa e senti um pouco de febre e como tal digiri-me às urgências ao hospital de Loures, entrei pelas 21 horas, dada a minha doença fui logo atendido, tiraram análises e viram que estava com muito poucos glóbulos brancos e com as plaquetas muito baixas, o que é uma situação de risco elevado uma vez que o corpo sem glóbulos brancos perde  a imunidade e com poucas plaquetas ainda piora mais a situação, fiquei lá toda a noite em observação, as 4 da manhã repetiram as análises e os valores ainda baixaram mais... eram 7 da manhã e eu queria ir embora tinha de ir trabalhar... obviamente..., a medica que me atendeu não me queria deixar sair do hospital, dizia que eu tinha de ficar internado e eu disse-lhe logo, olhe aqui não fico... se não me der alta eu saio pelo meu pé.... quero ir para casa, vou dormir até às 9 da manha e depois levanto-me e vou trabalhar....
A medica, num tom incrédulo disse-me:
- Eu nunca vi ninguém na sua situação, com a sua doença a querer ir trabalhar... nunca me aconteceu... eu vou falar com o meu chefe porque não posso decidir isto sozinha...
Foi para dentro e ao fim de 15 minutos aparece com um ar sorridente e diz-me... olhe o meu chefe disse: - Realmente isso não é muito normal, mas se o homem aparenta estar bem e quer ir trabalhar, deixe-o ir trabalhar....!!!!
Eu fiquei muito contente e claro a medica recomendou-me que se voltasse a ter febre fosse logo ao IPO... 2 dias mais tarde voltei a ter febre e fui ao IPO e quando me tiraram análises viram que tanto os glóbulos brancos como as plaquetas tinham subido relativamente as que tirei em Loures apesar de ainda estarem baixas...

Daqui tiro algumas conclusões:

Há médicos que só vêm as doenças e não vêm os doentes... não se dão conta que numa doença destas a situação anímica do doente é muitas vezes tão ou mais importante do que os tratamentos que prescrevem...

O trabalho e a atividade física de uma forma geral melhoram os indicadores de saúde... neste caso tanto os glóbulos brancos como as plaquetas melhoraram por ter retomado a minha atividade normal ao invés da descida que houve enquanto eu estive no hospital...

Muitas vezes os médicos não ouvem os doentes, quase que os ignoram e isso em doenças destas amplia a nossa impotência e contribui em larga escala para os estados semi depressivos em que se encontram grande parte dos doentes oncológicos...

Outra das conclusões é o mito que se criou à volta dos doentes oncológicos, que estes devem parar... deixar o trabalho... entrar em baixa de doença... ficarem em repouso e abandonarem todas as suas rotinas que impliquem esforço físico ou intelectual... e infelizmente ainda há alguma classe médica que contribui para a sobrevivência deste mito...

Recomendo a todos os doentes oncológicos que tentem continuar todas as rotinas e atividades que tinham antes, na medida do que a sua situação física lhes permita, porque o pior que nos pode acontecer é deixarmo-nos matar pelo estigma do cancro... como dizia alguém hoje no facebook.... "posso morrer de cancro, mas ele nunca me matará!"

Amigos, não se deixem matar pelo cancro.....

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Caminhadas e angariação de fundos para a Luta contra o Cancro

Em finais de 2011 resolvi iniciar um projeto de caminhadas, tendo como objetivo criar um grupo de amigos que de uma forma mais ou menos continuada praticasse semanalmente o pedestrianísmo de cariz gratuito e índole desportiva ou como alguém mais tarde apelidou de cariz radical... Uma das vantagens além da pratica de exercício semanal seria também a preparação física para as atividades de montanha que eu costumava efetuar nas férias.

Lancei a primeira caminhada oficial em Dezembro de 2011 e o sucesso foi imediato, apareceram mais de 30 pessoas, desde aí nunca mais parei e o grupo foi crescendo e hoje somos mais de 50 que de uma forma mais ou menos regular nos encontramos semanalmente para conviver e caminhar...

Depois do Verão de 2016 quando reiniciámos as caminhadas e na sequência de todos estes acontecimentos senti que tinha que modificar algo nesta atividade porque depois deste processo tudo mudara na minha vida principalmente a forma como via as coisas e o sentido que via nelas, algumas deixaram de fazer sentido, outras ganharam um sentido inesperado... e para que este meu hobby das caminhadas continuasse a fazer sentido tinha que haver algo mais...então resolvi introduzir um peditório de angariação de fundos em cada caminhada, onde cada um dá o que quiser e se quiser... e o produto da recolha é doado à Liga Portuguesa Contra o Cancro....

Mais uma vez a ideia teve um sucesso inesperado como quase tudo o que aconteceu neste grupo! uns por solidariedade para comigo, outros porque acharam a ideia genial e outros pelas mais variadas razões todos concordaram que era um boa ideia e as recolhas foram efetuadas desde aí em todas as caminhadas, desde Setembro de 2016 até 31 de Dezembro de 2017 foram recolhidos 3.400 euros e em 2018 já vai em 770 euros, o resultado dos peditórios é publicado no site do grupo na internet, regularmente é feita a entrega na Liga e os recibos são também publicados no site para que haja transparência no processo.

Quando senti que a ideia tinha vingado e todo o grupo tinha concordado, senti-me muitíssimo feliz e bem comigo próprio, era como se todo este projeto de juntar amigos e caminhar pela natureza tivesse finalmente atingido o seu objetivo mais nobre, a sua missão definitiva, foi o juntar mais um sentido à última fase da minha vida... e acreditem que nesta fase há mesmo que procurar mais sentidos, mais razões para continuar aqui... e sempre que conseguimos justificar a nossa existência tudo isto ganha mais suporte e ajuda-nos imenso a viver... ao ajudar sentimo-nos ajudados... e isso é muito gratificante!

Ao mesmo tempo ajudamos também os outros a procurarem um sentido, eu tenho reparado que as pessoas gostam de fazer esta doação, vejo que se sentem melhor consigo próprios por contribuírem para uma causa que todos consideram justa e nobre... é importante este doar aos outros nas nossas vidas, é a contrapartida da gratidão que sentimos por estarmos aqui, sábado após sábado, a caminhar pela natureza por montes e vales e sonhos encantados!

Obrigado aos Novos Trilhos pelo seu empenho nesta causa!

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Autopiedade e revolta


Ouço muito falar de revolta e vejo muitos comportamentos de autopiedade, por parte de alguns dos meus colegas de cancro e também de familiares e amigos chegados.... frases como "Não é justo...", "Porquê a mim?", "Eu não merecia isto...", "Sinto-me revoltado...", etc... palavras e ideias que entendo...na perfeição... felizmente que nunca cheguei a passar por esta fase, talvez porque por via de outros problemas anteriores tenha conseguido ultrapassar essa coisa da autopiedade.

Tudo isto são várias faces do mesmo problema que se chama autopiedade, esta autopiedade que nos leva a ter pena de nós próprios e nos prende e aniquila como uma teia onde a aranha apanha a presa... ficar preso nas teias da autopiedade é das piores coisas que nos pode acontecer na vida, no caso do cancro é a mais negra das situações, pois a autopiedade faz-nos escavar cada vez mais fundo num ciclo vicioso sem fim.... Quanto mais pena temos de nós próprios mais pena nos dá a nossa imagem numa espiral negativa que aniquila e asfixia paradoxalmente, cega-nos, leva-nos ao ressentimento, ou seja, à revolta... e a muitos outros os sentimentos negativos que nos poluem a alma...

Tudo isto começa porque todos ou quase todos pensamos que somos pessoas boas, honestas, com bons sentimentos, etc.., pensamos que salvo raras e irrelevantes exceções temos um bom curriculum de várias boas ações... temos tendência a identificar pessoas que têm comportamentos muito piores do que os nossos, esses sim, esses merecem... nós não... todos temos uma lista interminável de pessoas que mereciam ser castigadas pelas mais variadas causas...

Pois eu penso que a autopiedade é o sentimento mais egoísta que existe... ora vejamos.... quando ouvimos dizer "Não é justo..." isso quer dizer que todas as outras pessoas que têm cancro é justo? só nós é que não? ou então "Porquê a mim".... transformemos isto em "Porque não a mim?...." o que tenho eu de especial que os outros doentes oncológicos não têm? isto não é egoísmo? ou "Eu não merecia isto...." e os outros merecem?... "Sinto-me revoltado..." porquê? o que tenho eu de tão melhor pessoa do que os outros que me sinta revoltado por ter o mesmo que eles?... pois é meus amigos a lista de situações é mais ou menos interminável....

Somos pessoas humanas comuns... não somos melhores nem piores... somos diferentes... cada individuo tem a sua idiosincrassia pessoal, mas no geral somos bastante heterogéneos com os demais.... não é assim tão difícil aceitar que a sorte que calhou aos outros quando o cancro lhes foi diagnosticado foi a mesma que nos calhou a nós... o problema é que o nosso egoísmo cega-nos e não nos deixa ver a realidade tal como ela é.... estamos tão focados nas nossas desgraças que nem conseguimos ver as dos outros... essa é a questão principal... muitas vezes basta-nos olhar para o lado e sempre existem casos piores que o nosso... sempre... basta procurar...

Há uns tempos estava no hospital Amadora-Sintra e ao meu lado estava uma senhora que aparentava ter a idade da minha mãe, no incio da quimioterapia e por causa dos efeitos secundários que tinha nos dedos acabamos por conversar sobre isso... a dada altura ela diz bem alto: Estou tão revoltada!!!  repetia .. e repetia... e eu já começava a sentir-me impaciente e perguntei-lhe: então e sente-se revoltada porquê? ela prontamente: Pelo cancro, eu não merecia....!!!! e eu respondi-lhe: Então se a senhora não merecia... acha que as outras pessoas que estão aqui merecem? só a senhora é não merecia? Ela ficou atrapalhada, calou-se e não falou mais e eu pensei... pronto, por causa deste meu mau feitio, acabei de arranjar mais uma "amiga" e vi que ela tinha ficado incomodada... No mês seguinte fui novamente tirar análises como faço quase todos os meses... e quando entrei na sala vi a mesma senhora ao fundo mas não me dirigi a ela e fui até ao guiché tratar da minha consulta e qual não é o meu espanto, quando sinto alguem a tocar-me no ombro e dou de caras com a mesma senhora a perguntar-me como é que eu estava e com uma cara que irradiava simpatia... não sei se foi mesmo da conversa anterior mas o facto é que a senhora estava com outro ar... será que a minha resposta a ajudou? não sei...

A autopiedade limita-nos o campo de visão, impede-nos de sentir gratidão, leva-nos à autoderrota, ao sentimento de infelicidade, e não nos deixa andar para a frente, levantar cabeça e continuar... este sentimento num doente oncológico ou mesmo numa familiar é altamente destrutivo e impede a pessoa de iniciar o caminho mais correto e assertivo da aceitação....

Libertarmo-nos da autopiedade é o primeiro passo para acordar para a nova realidade que temos  e seguir o nosso caminho, procurar a felicidade nos dias que nos restam... aceitar a nossa condição sem dramas e viver, viver o que nos resta com paixão e qualidade!



quarta-feira, 4 de abril de 2018

Gran Paradiso - O cumprimento de um sonho


Depois de ter melhorado e estabilizado os efeitos secundários com a mudança de medicamento decidi então marcar a viagem para os Alpes, destino: Parque Nazionale del Gran-Paradiso, nos Alpes Italianos. O Gran Paradiso é o único pico alpino com mais de 4 mil metros totalmente em território italiano pois todos os outros fazem fronteira com outros países, França, Suíça e Áustria.

Esta zona dos Alpes caracteriza-se pela sua beleza e natureza ainda muito selvagem, situado entre a fronteira francesa e o vale de Aosta, é um verdadeiro paraíso para apreciadores de trekking de montanha como é o meu caso.

Não pretendíamos subir ao pico do Gran Paradiso com os seus 4.061 metros, mas sim fazer um circuito que cruzasse os vales e os vários colos com mais de 3.000 metros deste parque natural. Noutra altura teria feito este circuito sozinho mais a minha mulher com fizemos outros antes, mas agora nesta condição sentia-me mais seguro com o percurso contratado por uma empresa especializada com guia e toda a segurança inerente, não porque não me sentisse fisicamente capaz, mas porque o stresse de poder acontecer alguma coisa me retiraria todo o prazer da atividade.




 


Partimos para Lyon, comboio até Bourg-Saint-Maurice, perto do Vale de Isére, os serviços da empresa tranportaram-nos até ao vale de Aosta em Itália onde iniciámos o percurso, foram 7 dias de trekking intenso, todos os dias subidas e descidas de mais de 1.000 metros abruptas e selvagens, com sol, frio e neve, paisagens de cortar a respiração, senti-me no sétimo céu... o regresso ao ambiente espetacular dos refúgios de montanha, os convívio com os outros participantes, senti o quanto gosto da vida e deste tipo de atividades... o percurso de uma beleza ímpar, os refúgios italianos sempre muito acolhedores, enfim... que podia eu mais querer? Alguns meses antes estava a ler o diagnóstico de metástases por email pensando que a vida acabava ali... agora sabia que ainda era possível ter os meus momentos de felicidade e desfrutar do tipo de atividades que mais prazer me dá... melhor era difícil...











Por conselho da médica deixei de tomar o Pazopanib durante 12 dias, alguns dias antes e durante a atividade de forma a tornar menos penosa esta viagem e claro... sem quaisquer efeitos secundários senti-me completamente normal, como se fosse uma regressão à época antes do cancro... uma maravilha... um dia subíamos um trilho bastante duro e a meio parei olhei para a minha mulher e disse-lhe... "Sinto-me tão feliz mas tão feliz que mesmo quando penso no cancro é como se fosse uma coisa fofinha..." ela sorriu soltamente, eu também e continuamos o nosso quase sonho...



cancer renal


Considerei-me um verdadeiro eleito com a gratidão ao rubro.... era bom estar ali, era bom estar vivo, era bom ter conseguido regressar às montanhas... era bom não ter efeitos secundários e estar normal... era bom estarmos os dois ali... como se nada se passasse... Mesmo nas alturas más, consegue-se sempre viver momentos de felicidade eterna, mas para isso há que abrir o espírito, desfocar da doença e desfrutar do que ainda temos com tanta intensidade quanta conseguirmos.....!!!!