quarta-feira, 30 de maio de 2018

Deus e o cancro

É bastante controverso este tema... hesitei bastante antes de publicar este texto, esta matéria é demasiado complexa e subjetiva... e por muito que possa escrever será sempre uma visão simplista e algo redutora mas mesmo assim acho importante expor o meu humilde ponto de vista para quem atravessa estes caminhos oncológicos...

Qual a relação entre Deus e o cancro? À primeira vista até pode parecer que são temas antagónicos... Digo antagónicos porquê? porque muitos doentes oncológicos na fase inicial da revolta, consideram muitas vezes que foram abandonados por Deus, porque foram crentes e viveram como Deus manda e afinal de nada lhes valeu... porquê eu? e tanta gente que "merecia" e não lhes tocou? Isto leva-nos por vezes a uma negação divina e a por em causa todas as nossas crenças... e toda a nossa concepção das coisas divinas mesmo para os mais crentes... trata-se de uma reação natural... é a revolta... é humano...

Para uns a existência terrena é absolutamente material, fruto da evolução da natureza... do ponto de vista cientifico da expansão do universo... passando pela criação das galáxias, planetas... organismos vivos... teoria de Darwin... homo sapiens.... matéria e energia... a grande e poderosa lei do acaso! todas as coisas são fruto do acaso e a teoria do acaso dos acasos que acabam por explicar tudo o que se passa connosco e à nossa volta, nascimento, vida e morte, absolutamente materiais sem qualquer fio espiritual condutor... e assim se explica tudo sem complicações e na maior das racionalidades.... e se assim o quisermos tudo encaixa na perfeição.

Para outros, toda a nossa existência terrena faz parte de um plano de um Criador ou vários Criadores... um mundo terreno e material paralelamente a um mundo espiritual fruto de arquiteturas divinas com um objetivo superior... tudo acaba numa crença divina onde a fé...a espiritualidade... a alma, o espírito, as trindades, os dogmas, a crença na imortalidade da alma, a crença numa vida para além da morte... todo um conjunto de pressupostos espirituais os quais independentemente da religião que se professe dão suporte às nossas angustias, aos nossos medos, e acabam por dar um sentido novo e repleto de significado às vidas de cada um.

No meu caso, assim que comecei a pensar por mim próprio achei que o primeiro grupo era o que me fazia mais sentido, absolutamente material, sem qualquer crença espiritual ou religiosa... a morte era o final e não necessitava de mais nada, a religião não passava de um código para regular a vida em sociedade e apenas fazia falta aos fracos... Com o passar dos anos, com as dificuldades normais da vida, com a evolução normal das nossas sensações e experiências, comecei lentamente a duvidar da absoluta materialidade do mundo que conhecia e aos poucos fui vendo alguns sinais de algo que poderia transcender a simples materialidade terrena... mas de qualquer forma sem dar muita importância ao assunto...

Outras dificuldades que se me foram deparando ao longo da minha existência foram reforçando cada vez mais a minha crença em algo para além do mundo material e a crença cada vez maior num poder acima da humanidade cada vez mais delineada e com uma lógica que me foi lentamente modificando...

Quando me foi diagnosticado o cancro tenho de concordar que já havia feito esse caminho de acreditar num poder superior... em algo mais importante do que a simples materialidade das nossas vidas... algo que delineava o nosso caminho e fazia dele uma espécie de percurso espiritual de crescimento e de sofrimento, porque um não existe sem o outro... não professava nenhuma religião em especial e assim continuo até hoje... nem me posso considerar crente de nenhum religião em particular, apesar da educação judaico-cristã, como quase todos nós neste país, nem tão pouco simpatizante, mas consigo ver em quase todas as religiões um tronco comum que me faz sentido e me tem ajudado pela vida fora à medida que o vou descobrindo...

O cancro fez me dar mais um passo neste sentido, no sentido da espiritualidade e crença num poder superior e algo mais.... como diz um amigo meu... não há crescimento sem sofrimento... o que é bastante verdade... pois é difícil crescer sem passar por certas fases de sofrimento que nos fazem ver as coisas com outra perspetiva e avançar no auto conhecimento, na busca de melhoria da nossa forma de ser e viver. No que respeita ao auto conhecimento ele é sempre muito difícil pois fácil é apontar defeitos aos nossos semelhantes, elencar pormenorizadamente todos os defeitos dos nossos amigos... mas tão difícil é identificar os nossos, encará-los de frente e pior ainda... admiti-los! É um percurso tortuoso, lento, com avanços e recuos... exigente... mas que uma vez começado a trilhar nos dá uma paz interior muito grande e uma muito melhor compreensão dos outros....

Quando fui ao tal médico de clínica geral que me ajudou no dia da consulta do psicólogo, uma das coisas que ele me referiu é que era mais fácil para as pessoas que tinham crenças religiosas aceitar a morte e o sofrimento do cancro... hoje consigo medir com exatidão as palavras dele e confirmo-as...  Hoje creio que ao mesmo tempo que me deu a doença Deus ofereceu-me uma oportunidade de ver a vida, as pessoas e os acontecimentos com uma outra perspetiva completamente diferente, fez-me ver que se podia viver com outros objetivos muito menos importantes e de uma forma até mais feliz... fez-me ver o valor que os meus familiares e amigos mais chegados têm para mim... fez-me no fundo rever todos os valores e referências que eu tinha para outros mais avançados, mais justos e ao mesmo tempo também mais simples e humanos...

Porque para mim e mais uma vez parafraseando alguém... Deus não é o "Gajo da pedincha" a quem recorremos para nos ajudar a obter toda a quantidade de coisas que nos passam pela cabeça... até nos damos ao luxo de lhe prometer coisas em troca de favores... se me deres isto faço-te aquilo, se não deres... não te faço nada....não!... nada disso... Deus deu-nos os nossos caminhos para trilhar, para crescermos e nos tornarmos melhores pessoas.... e nós não temos outro remédio senão aceitar e aprender a viver neles e com eles.... porque se analisarmos friamente, nós escolhemos muito pouco das nossas vidas, grande parte das coisas apareceram no nosso caminho sem que tivéssemos influído nelas, o cancro é uma dessas coisas.... a nossa parte, aquilo que é da nossa responsabilidade é a forma como vivemos os obstáculos que nos vão aparecendo... é essa a nossa parte.... Eu apenas peço a Deus que me ajude a enfrentar esses obstáculos da melhor forma possível, que me ilumine e me dê força para eu escolher o melhor caminho, que me ajude a ser feliz dentro das limitações que ele me impôs... e sempre que penso assim ganho uma paz e uma calma que se não forem Deus são um perfeito antídoto que me ajudam a suportar as barreiras que vão aparecendo no horizonte...

Os budistas têm uma visão da vida que muito aprecio, para eles o inferno fazemo-lo nós quando escolhemos o caminho da negação e de não aceitação da realidade, nessa altura tudo se torna um inferno à nossa volta, vivemos na ansiedade e no ressentimento.. na raiva e na desilusão das expectativas... o outro caminho representa o paraíso... é a Aceitação! capaz de nos tornar felizes mesmo nas piores fases das nossas vidas, porque a forma como encaramos as adversidades determina implacavelmente o nosso estado de espírito e toda a nossa vida!

A quem não tem qualquer crença e mesmo a quem a tem, sugiro humildemente que pensem sempre nisto, grande parte dos obstáculos que nos aparecem não podemos afastá-los nem os podemos modificar, então cabe nos a nós o papel de os enfrentarmos da forma mais razoável possível, da forma menos infeliz... essa é a procura que deve estar sempre no nosso objetivo, pois quer acreditemos ou não numa entidade superior uma vez que a aceitação não pressupõe necessariamente uma crença divina, seremos com toda a certeza mais assertivos e mais felizes se aceitarmos as adversidades e aprendermos a sobreviver com elas e não contra elas!




Sem comentários:

Enviar um comentário