quarta-feira, 6 de junho de 2018

Praticar o Desapego

Praticar o Desapego

Este é um tema verdadeiramente difícil para mim...  Os seres humanos têm a necessidade intrínseca de criar vínculos com coisas, plantas, animais, pessoas, situações e até emoções, no fundo criam-se vínculos com quase tudo aquilo que nos rodeia... Neste sentido também eu passei a vida a colecionar coisas com as quais criei vínculos... pequenoss vínculos... como a horta, a minha casa, os meus periquitos, o meu papagaio, o meu carro... grandes vínculos como a minha família, a minha mulher, os meus filhos... os meus pais, o meu irmão, os meus sobrinhos, as minhas cunhadas... e todos os meus familiares mais chegados e outros amigos mais recentes mas muito especiais com quem aprendi a viver melhor.... vínculos às coisas que fiz e me empenhei.... os meus empregos, a minha carreira profissional... os trilhos, o meu grupo de caminhadas... que eu criei... com todos os meus amigos das caminhadas que me acompanharam e ainda me acompanham por sábados e sábados... muitas coisas que fiz e me orgulho e ainda bem! as minhas atividades de montanhismo, bicicleta, corrida, etc...

Para mim existem pelo menos 3 grandes tipos de vínculos e apegos. Apegos a coisas materiais, apegos a situações que criamos ou foram acontecendo durante a nossa vida e finalmente, os apegos a pessoas. Antes de me ter sido diagnosticado o cancro eu não tinha muita noção destes apegos com exceção do apego às pessoas que me são queridas, pois se eu tinha as minhas coisas era porque eu as tinha conquistado e por definição elas eram minhas e seriam-no eternamente, porque eu vivia como a esmagadora maioria de nós.. no pressuposto da eternidade... todos nós sabemos que vamos morrer.. mas imaginamos isso num futuro tão longínquo que a morte não nos afeta nada no presente, e ainda bem que assim é, pois muito dura seria a vida se passássemos 24 horas de cada a dia a tomar decisões no pressuposto de que morreríamos no dia seguinte, aliás... parece-me que nesse caso o mundo nunca teria passado da pré-história...não é verdade?

Hoje apenas vou falar dos vínculos materiais e de situações pois no que respeita aos vínculos a pessoas considero que ainda não é a "hora", o que não quer dizer que eu não pense neles e não vá no meu cérebro praticando algum desapego apenas no sentido que sei que um dia destes terei que deixar as pessoas de quem gosto e que o mundo vai continuar na mesma velocidade... mas sobre isso falarei outro dia ... ou não... quem sabe?... 😊

Todos estes vínculos são neste momento para mim futuros pontos de rutura dos quais um dia destes mais cedo ou mais tarde irei ter de abrir mão, "desapegar"... Este desapegar como devem calcular é muito, muito difícil.... é uma perfeita tarefa hercúlea porque é um pouco como contrariar a nossa natureza, e como praticar este desapego? Como abrir mão do nosso controlo sobre coisas que desde sempre nos habituámos a liderar e aceitá-lo e entregá-lo? Como desapegar das nossas pequenas coisas sem sofrer? Como desapegar dos nossos entes queridos, família e amigos? Uma amiga minha que me ajudou muito no inicio deste processo e que pacientemente passou horas ao telefone a ouvir-me e falar e a dar me dicas que me foram verdadeiramente preciosas naquela altura e que me ajudaram a orientar os meus pensamentos disse me a dada altura... "e vais passar por uma fase em que vais começar a desapegar te das coisas... em paz e tranquilidade", na altura pensei: não... nem quero pensar nisso, isso não vai acontecer, mas não disse nada à minha amiga Ana, para não a desapontar... mais tarde, comecei de facto a sentir esse desapego a acontecer.... não porque eu quisesse mas porque as coisas foram evoluindo nesse sentido por força das circunstâncias...


No que respeita aos bens materiais nunca tive grande apego por exemplo ao dinheiro, sempre gostei de viver tranquilo com algum pé de meia que foi também ele evoluindo proporcionalmente àquilo que ganhava mas sempre apenas o necessário para adormecer tranquilo e acordar seguro... paguei sempre os meus empréstimos antes do prazo contratual... algo que me foi incutido desde pequeno por alguém que me deu grandes exemplos de vida, de ponderação e bom senso, de quem hoje tenho muito orgulho mas que nos meus tempos de juventude nem sempre dei o devido valor, o meu pai!

Se tenho alguma apego a coisas materiais só mesmo realmente à minha casa, o resto são pequenos vínculos dos quais mais ou menos facilmente me desapego e falo do meu carro (não da capacidade de conduzir), dos periquitos, da pequena horta e jardim, do gato, etc.. mas são todos eles pequenos vínculos que se tiver de os deixar não fico exageradamente triste... Quanto à minha casa isso já é outra história, mudei de casa imensas vezes... e no final consegui encontrar um local que me sinto mais feliz. Uma zona mais ou menos rural que me faz lembrar o local onde nasci e cresci mas a pequena distância de Lisboa, o suficiente para ter uma qualidade de vida quase campestre e ao mesmo tempo estar a 20 minutos da civilização. O objetivo era poder continuar a ter a minha vida profissional na capital e assim vim parar à zona saloia que adoro, apesar do clima atlântico um bocadinho agreste. Deixar esta casa vai ser difícil para mim mas provavelmente num futuro próximo será mais útil e sensato deixá-la por muitas e variadas razões e ir viver para mais perto de Lisboa mas o meu apego vai adiando essa decisão e torná-la mais difícil...

Os vínculos de situações estão muito ligados ao ego, o ego que nos domina e que não deixa espaço para o desapego... nem quer sequer ouvir falar dele... enfim... é outra vez a natureza humana, o ego cega-nos, manipula-nos e leva-nos a situações de onde às vezes é difícil sair...


Tem sido algo difícil o desapego da minha profissão.. que eu obtive por esforço e mérito próprio, vim para Lisboa com 17 anos, estudava à noite, trabalhava de dia, fui mudando de empregos à medida que ia adquirindo graus de estudo, ultrapassei barreiras consideradas difíceis, mais tarde tive o meu próprio escritório que criei do zero e desenvolvi e do qual me sentia (e sinto) muito orgulhoso...  e que obviamente iria prosperar até ao infinito...até porque eu sempre me entreguei de corpo e alma aos meus projetos e talvez por isso eles deram sempre certo. Na sequência do cancro tive de me associar a uma outra profissional que me ajuda imenso atualmente e no final irá dar continuidade ao projeto. Esta decisão permite-me trabalhar com mais tranquilidade de acordo com a minha atual capacidade pois apesar de não sentir quebra na capacidade intelectual, sinto que reduzi a resistência e a velocidade, embora os meus amigos da mesma idade se queixem do mesmo... mas ao mesmo tempo sinto algum sofrimento quando chega o momento de entregar as coisas a outra pessoa... podem dizer-me isso é porque não sabes partilhar.. mas o problema não é a partilha, partilhar é dirigir conjuntamente algo com alguém, aqui é lentamente ir entregando tudo até não restar nada, é diferente...é ir desaparecendo... é quase um sentimento de deixaer de ser necessário... como se estivesse a ser empurrado para fora do mundo... enfim, o tal desapego que é difícil porque mesmo inconscientemente estamos habituados a liderar os processos, a controlar as coisas e não estamos preparados de forma nenhuma para entregar todas as nossas coisas, desvincular-nos delas e ao mesmo tempo é o ego, o poder do ego que nos dificulta o desapego. Mas felizmente senti isso apenas nos primeiros dias, depois aprendi a ver a parte boa e sobretudo a desfrutar... comecei a sentir-me muito mais tranquilo porque já não estava sozinho a viver um problema oncológico grave e ao mesmo tempo com toda a responsabilidade profissional de clientes, empregados, problemas, etc.. senti um alivio muito grande pois podia continuar o meu trabalho de acordo com a minha capacidade e dividir com outra pessoa a direção e planeamento das coisas e ir me desligando a pouco e pouco com paz e tranquilidade tal como dizia a minha amiga...., afinal ela tinha razão.... Obrigado por tudo Ana!

Noutras situações o desapego tem vindo a acontecer de forma natural, primeiro foram as atividades para as quais necessitava de mais resistência tais como correr e montanhismo pois apesar de ainda o continuar a fazer, já não tenho a mesma resistência, não foi fácil aceitar esta limitação mas começou a fazer parte do meu dia a dia... inicialmente as dores nos pés impossibilitaram-me quase por completo de caminhar... e apesar de ser temporário foi um bom exercício para me confrontar com a necessidade de praticar o desapego...A partir daí eu vi claramente que tinha mesmo de o praticar com aquelas coisas em que me seria mais fácil desapegar... no grupo das caminhadas comecei também a entregar toda a logística de preparação... e a preparar outras pessoas para me substituir como guia quando eu não posso e mesmo quando posso mas não quero ser o guia e prefiro entregar isso a outro e desfrutar da caminhada como os outros...


Hoje já com quase 2 anos passados desde que iniciei a medicação... já me é bastante mais fácil desapegar-me de algumas coisas... de alguns vínculos, principalmente dos vínculos que significam controlo, esses têm sido mais fáceis... na profissão, nas caminhadas e noutras situações. Sei que este processo faz parte do meu caminho de aceitação, porque sei que o desapego é inevitável... e se não o praticar regularmente apenas aumento o meu sofrimento... apesar de existirem ainda muitas coisas que me custam a entregar... reconheço que conquistei muita paz e tranquilidade desde que comecei a praticar e a compreender a razão de ser do desapego mas apenas na medida em que o consigo...


Aquele que ata a si próprio uma alegria,
Destrói as asas da vida;
Aquele que beija a alegria enquanto ela voa,
Vive na aurora da Eternidade.


(Livro Tibetano da Vida e da Morte)





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